Nessa madrugada eu tive um sonho. Nesse sonho, eu estava
em uma rua movimentada. Todas as pessoas tinham os olhos puxados e, como estava
uma chuva tremendamente forte, todos tinham um guarda-chuva, menos eu. Eu
estava molhada e olhava para frente. Olhava para a única pessoa que não possuía
olhos rasgados além de mim. Olhava para um homem inglês, de terno preto que me
encarava severamente, me chamando de filha.
-Você nunca será meu pai! - Tentei gritar, mas minha voz
não saiu.
E então, como se ele tivesse escutado o que eu disse,
senti sua raiva fluindo de seus olhos e, depois de muitos anos, eu senti medo.
Acordei assustada. Odiava sonhar com ele. E ainda
lembrar do crápula que foi com a minha mãe,
chega a me dar nojo.
Enquanto lembrava daquele homem frio, alguém bate na
porta.
- Srta. Smith? - Era Anny – Preciso arrumar as malas!
Olho no relógio, 6:57.
- Entre Anny!
A empregada entrou quieta e começou a pegar minhas
roupas.
- Eu vou levar tudo, Anny! Não quero que aquele velho
gaste um centavo comigo.
- Você nunca pensou que ele poderia ter mudado, Alice?
- Quem nasce pra ser filho da puta, não muda tão fácil.
Ela sorriu. A Anny gosta das minhas euforias, dos meus
palavrões. Mas, ao contrário de mim, ela é toda menininha, toda inocente. Mesmo
assim nos damos muito bem.
Enquanto ela arrumava as malas, eu fui tomar um banho. O
relógio marcava 8 em ponto, quando fiquei pronta. Minhas malas estavam na porta
do meu quarto, e quando vi aquele porta-retrato de mim e da minha mãe na nossa
última viagem a Alemanha, no dia que ela disse que sofreria tudo de novo,
somente para me ter como filha, senti um aperto no peito.
Um ano é muito tempo. Muito tempo pra quem nunca deixou
a mãe sozinha. Pra quem nunca ficou longe de casa.
- Já está pronta Alice? - Minha mãe estava na porta, de
social. Linda.
- Sim, vamos? - Peguei o porta-retrato – Vou levar isto.
- Você vai gostar tanto de lá que vai se esquecer de
mim! - Ela riu e tratei de fazer minha melhor expressão irônica – Para de ser
boba menina! Lá não é tão ruim do jeito que você pensa! Vamos logo!
A empregada me ajudou a pegar minhas malas e o
motorista colocou dentro do porta-malas.
Em 20 minutos eu já estava no aeroporto e pronta pra ir direto ao matadouro.
Minha mãe sentiu minha raiva e apenas me abraçava. Além de falar que nem um
papagaio.
- A escola de lá é ótima! Seu pai disse que é uma das
dez melhores do mundo! E quando você terminar a faculdade já pode até mesmo
trabalhar lá com ele! E...
-MÃE! -Dei um grito no aeroporto e algumas pessoas
olharam pra mim – Já chega, caralho! Já é muito você me obrigar a ir pra esse
inferno morar com um Demônio que é aquele filho da puta que você diz ser meu
pai! Outra coisa, bem pior, é você querer que eu trabalhe com ele! Você ficou
louca? Qual é essa de querer que eu fique com aquele inútil agora? Não me
suporta mais? - Minha raiva aumentou e em pouco tempo já estavam olhando pra
mim – ME MANDA PRA CASA DA MINHA AVÓ, CARALHO! NÃO PRA CASA DAQUELE FILHO DA
PUTA!
Minha mãe sempre foi muito calma quando se tratava de
nossas brigas. Ela sempre esperava eu explodir, pra depois me dizer algo que me
fizesse abaixar a bola e calar a boca. Minha mãe é muito foda. Mas agora ela
não tinha razão e nós duas sabíamos disso.
- Me desculpe. Mas não tive outra escolha.
- Você sempre tem mais de uma escolha. Me manda pra um
convento, sei lá. Me prende num sanatório ou até pra puta que pariu. Mas não me
manda pra lá!
Ela me ignorou enquanto verificava meu passaporte e
algumas outras coisas. Minha mãe entende mais disso do que eu, enfim...
- Não me ignora!!
- Olha Alice. Eu já conversei com você. - Ela se virou para falar algo com o atendente
lindo que ficava me encarando – Seu pai não é aquela pessoa de antes. Quando
você chegar lá você vai perceber isso.
Então ela saiu da fila pra continuar.
- Vou ser sincera com você minha filha. Seu pai foi um
cafajeste, mas foi comigo! Você tem que entender que você não teve nada a ver
com isso. - Ela respirou fundo – Ele foi
um ótimo pai, e isso deve ser a única coisa que importa pra você.
- Mas não vou perdoá-lo pelo que fez com você.
“Atenção senhores passageiros, o voo #562, com destino
ao Japão...”
- Vamos vamos!! - Nem consegui prestar atenção na mulher
do alto-falante, minha mãe mudou o assunto drasticamente falando sobre o voo,
que se acontecer algo eu devo pegar aquela máscara de oxigênio e orar, orar,
orar... A mesma ladainha que eu escutei na viagem de ida e volta pra Alemanha.
Aliás, onde está o porta-retrato?
-... E eu coloquei seu porta-retrato na mala, sabia que
poderia esquecer no carro. - Ela leu a minha mente. Só pode!
Com o último abraço e último adeus, me despedi da Sra.
Smith. Ela chorou tanto que seus olhos pareciam cachoeira. Eu, pelo contrário,
segurei minhas lágrimas.
Me virei pela última vez para meu amado país.
-
Adeus, Inglaterra. - Sussurrei, sentindo meus olhos marejarem, antes de subir no avião.
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